quarta-feira, 26 de março de 2014

O SOCIAL, A RESPIRAÇÂO E A ALIMENTAÇÃO

O corpo dum indivíduo, tanto quanto (por comparação) o usual na maioria das estruturas sociais, tem órgãos insubstituíveis para que possa existir como entidade viva, desde logo o coração, parte do fígado como do cérebro e dos rins. Todavia, laborem esses órgãos bem ou mal, há duas funções fisiológicas dependentes do próprio indivíduo (em regra) a determinarem, tanto como o ambiente, o que cada um vai ter como existência. São elas a respiração e a alimentação.
Miguel Sousa Tavares discorre na sua última crónica no Expresso, uma das suas melhores de sempre, sobre um ângulo de olhar singular. Não que tudo seja original nele, porquanto se repete, e ainda bem. Não que eu próprio não pregue parte daquele sermão há muitas luas. É um texto importante por fazer saltar à evidência, não apenas a longevidade dos nossos problemas sociais – aquela patética viragem com D. Manuel I ou D. João II é determinante e manteve-se até agora -, mas sobretudo porque não toma por maus apenas quem manda e por bons em exclusivo os mandados. Admitindo que a qualidade moral dum povo (entidade mutável), é a variável mais interveniente. Somos o que nos condicionaram a ser mas somos também no que fazemos e pensamos.
E se a respiração nos pode facilitar o passo como o sono, a concentração intelectual e a tranquilidade de espírito, os mecanismos diretamente ligados àquilo que comemos, desde a motilidade e o transporte até à digestão, secreção e absorção, com um cortejo infindo de enzimas e coenzimas, hormonas, proteínas e vitaminas transportadoras, receptores, etc., conferem-nos saúde e doença, esta muito variada e de grau diverso. Passa-se o mesmo com o social.
Há países que há 120 anos tinham fraquíssima riqueza (vejam-se os filmes de Bergman, por exemplo, a ilustrarem essa época) e já estavam no grau zero de analfabetismo. São países onde as instituições são merecedoras do maior respeito (e não me refiro a facciosismos religiosos ou desportivos) e onde se privilegia a prática privada. Mesmo que eu nada tenha contra a prática pública. Todavia, num exame que fiz recentemente no estrangeiro um dos arguentes, holandês, apesar de ter a obrigação de ter estudado bem o currículo, perguntou-me se tinha trabalhado sempre para o setor público. Afinal, tudo isto terá ver com a maneira como somos no exercício da cidadania, na forma como, em termos sociais, respiramos e comemos. 
Março 2014
Henrique Pinto



segunda-feira, 17 de março de 2014

DAR A MÃO

Esta era uma altura onde eu ainda não descurava o porvir dum certo abrandamento das tenções no mundo. A terceira via poderia conter um certo lastro de oportunidades conciliatórias entre a paz e a economia. A influência das grandes organizações de serviços parecia ganhar asas para suster algum do apetite dos falcões e superar a inépcia dos inúteis.
próprio Jonhatan Majiagbé escolhera para seu lema «Lend a Hand». Eu escrevera há pouco O Século do Bem Estar, uns tempos antes do 11 de Setembro. Parte da década foi efetivamente marcada pelo empolamento agressivo da então única grande potência mundial. Nos anos seguintes arrastou-se no crash da desregulamentação económica, no aparente triunfo neoliberal com o endividamento das dívidas soberanas, o empobrecimento das classes médias e a pauperização das menos bafejadas pela sorte. 
Foi nesse ínterim que escrevi Até o Diabo Tem as Malas Feitas, uma asserção premonitória na aparência a encobrir a esperança. Hoje, quando se esboroa a mais sólida união da história, a EU, e o lobo das estepes se sente de jure o novo líder único do mundo, voltam os nacionalismos exacerbados e as tendências imperiais, mesmo entre países fundadores da União. 

Anthony Giddens, o homem da globalização e verdadeiro autor da terceira via, manifestou no início desta atual fase do capitalismo global a esperança num novo ciclo de rejuvenescimento da democracia social. 
Sem razões palpáveis para o acreditarmos hoje, plenamente, temos forçosamente de pensar que nem todos os jovens de hoje queiram enriquecer até aos trinta, nem todos os homens inteligentes e democratas da política serão comprados pelo grupo Goldman Sachs e nem todas as aflições nos levarão a conduzir motoboys da pizza a presidentes.
Março 2014
Henrique Pinto

quarta-feira, 12 de março de 2014

A COR DAS CORES

A procura sistemática da verdade mesmo se imperfeita e o libelo sobre a imperfeição de causas expressas sem aspirar a derradeira perfeição (e isto é tudo menos o que norteia os nossos destinos coletivos, bem mais térreo), são caminho menos árduo que o percorrido por Van Gogh, com os seus meios exíguos, na procura da melhor cor, o graal da cor.

De certo modo Renoir, Degas, Gauguin e tantos outros até Nadir Afonso, Sousa Cardozo, Skapinakis ou Paula Rego fizeram o mesmo mesmo se com menos intensidade.
Veneramo-lo hoje pelo exultante resultado da sua obsessão artística, prodigiosa, sem deixarmos de tolerar a arrogância e a inverdade dos que se creem ungidos para nos guiar, a banalidade.
Março 2014
Henrique Pinto

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segunda-feira, 10 de março de 2014

TUDO SE FINA


Todo o organismo vivo se deteriora até se finar. É natural que nenhum país tivesse logrado o pleno na sustentação do seu património edificado. Mesmo assim a pobreza crónica de Portugal – nunca aproveitou por inteiro os períodos em que teve maior ventura – contrasta com o seu riquíssimo espólio artístico, conservado ou não.
O Mosteiro Cisterciense de Nossa Senhora de Seiça, na freguesia de Paião, é a ruína histórica mais abandonada de todos os grandes edifícios históricos deste país. Imagine-se que até já terá sido fábrica, armazém e pecuária.
Também quando a vida obriga a dobrar o corpo os portugueses sempre encontraram uma saída, fosse pela emigração ou pela economia paralela. E assim os homens lançam-se a apanhar a lampreia em pleno Mondego quando ela sobe o rio a caminho da desova. De fato que terão de fazer? 
Num momento de difícil solvência os funcionários do Estado e os reformados são o alvo escolhido para cobrar rendimentos enquanto a máquina pública emprenha de novos assessores de cueiros com bolsos de fortuna. Oferecem-se automóveis a quem validar as faturas com o seu número fiscal num ridículo indizível. E as pessoas pagaram para colocar o país no rumo liberal, depois foram esmifradas para suportar a incompetência dos fautores deste disparate livresco e livrar a banca do risco sistémico de não fazerem tanto dinheiro. E agora já nem sabem para o que pagam. 
É assim a várzea do Mondego, o povo à espera que a água se evapore nas salinas, tendo fé que o arroz sobressaia da água, esperando que o mal e seus mandantes nem sempre dure. 
A política deveria renovar-se como os campos. O país não pode ser a ruína abandonada.
Março 2014
Henrique Pinto